A (pré)
história perdida
Qual o espaço
de Sete Lagoas na montagem do quebra-cabeça que é a pré-história em Minas
Gerais? Esta pergunta marca o início de um "mergulho" sem volta no
mundo da arqueologia, da paleontologia e da antropologia. No caminho de todas
as frentes de pesquisa, um grande nome da humanidade: o naturalista dinamarquês
Peter Lund, considerado o "pai" da paleontologia brasileira.
Peter Lund, naturalista dinamarquês
Foi ele quem descobriu milhares de fósseis
humanos na Gruta da Lapinha, em Lagoa Santa, de fósseis de animais gigantescos
do período pleistoceno na Gruta do Maquiné e, assim, projetou Minas para o
mundo. Mas uma dúvida permanecia? Sete Lagoas, com suas belas grutas, não entra
nesta história?
Gruta Rei do Mato, Sete Lagoas, Minas Gerais, Brasil
Estas
questões deram surgimento ao projeto "Origens", cujo subtítulo é
"O enigma das cavernas", acerca da pré-história na região central de
Minas Gerais, em especial a área cárstica, que inclui cidades como Sete Lagoas,
Pedro Leopoldo, Matozinhos, Lagoa Santa e Cordisburgo, por exemplo.
Neste
documentário estarão respostas como: quem foram os primeiros habitantes desta
região? Quais eram as primeiras moradias? Como viviam? Como se organizavam? De
onde vieram? Como vieram parar em Lagoa Santa, Pedro Leopoldo, Sete Lagoas,
Cordisburgo e em Santana do Riacho (Serra do Cipó), em Lapinha da Serra?
Serra do Cipó, Lapinha da Serra, parte I
Serra do Cipó, Lapinha da Serra, parte II (final)
Sete Lagoas
está, sim, no registro da pré-história do Brasil. Não sou eu quem afirma, mas
um dos maiores bioantropólogos das Américas, Walter Neves, diretor do
Laboratório de Estudos Evolutivos do Homem (LEEH) da USP (Universidade de São
Paulo), autor do livro mais revelador sobre o período pré-histórico no carste
mineiro e, por extensão, no território americano: "O Povo de Luzia".
Luzia, a mais antiga "brasileira", com 11.500 anos
Nele, o
pesquisador afirma categoricamente que Peter Lund fez escavações em Sete Lagoas
e aqui descobriu fósseis humanos em uma gruta localizada em uma fazenda. A data
provável é o ano de 1834. Nesta época, Peter Lund e Peter Claussen, ambos
dinamarqueses, fizeram uma parceria, mas que logo tornou-se concorrência e inimizade. Relata Neves em
"O Povo de Luzia" que Claussen, já brigado com o compatriota, foi
sozinho à fazenda onde foram realizadas as escavações, levou todos os fósseis
de homens pré-históricos e vendeu o rico acervo a um "amigo" europeu.
Walter Neves, bioantropólogo da USP
Assim se
perdeu a pré-história de Sete Lagoas. O que Lund descobriu, Claussen
contrabandeou. Em algum país da Europa estão os mais antigos fósseis que podem
recontar o povoamento mais antigo de nossa terra.
Diferente
destino teve Lagoa Santa com o Museu do Homem, investimentos financeiros do
Governo da Dinamarca e a repatriação de 300 fósseis que Peter Lund enviou do
Brasil para o Velho Continente. Mais do que nunca, Lagoa Santa está no centro
das atenções de cientistas internacionais, de instituições de pesquisa, de
organizações de turismo. Enfim, no centro das atenções. "Luzia", o
mais antigo fóssil humano das Américas, com 11.500 anos, foi descoberta lá.
Ganhou as páginas de revistas, de jornais, virou artigo em revistas científicas
mundiais.
Nem tudo
está perdido, porém. Outras escavações podem revelar o lugar de Sete Lagoas nas
páginas da pré-história brasileira e americana. E marcar, definitivamente, o
nosso passado e projetar o futuro que nos aguarda, futuro esse ansioso por
descobrirmos o que está a poucos metros de profundidade: os primeiros
americanos que povoaram Sete Lagoas em suas cavernas.
Pintura rupestre na grutinha, ao lado da Gruta Rei do Mato
A seguir,
leia com exclusividade a reportagem
que vai esmiuçar os detalhes da pré-história em Sete Lagoas, com uma entrevista
inédita feita em um laboratório do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG.
Lá, ouvi e gravei declarações que vão mostrar para o mundo como a genética, em
articulação com outras áreas da ciência, revelará de onde viemos, quando, como
e porque. A entrevista a seguir é com o professor, pesquisador, cientista e
coordenador do Projeto Genográfico na América do Sul, Dr. Fabrício Rodrigues
dos Santos.
“Seria extremamente importante demonstrar como os
“primeiros brasileiros” chegaram aqui, quais são seus descendentes diretos
hoje, que rotas seguiram desde África, Ásia, etc, para chegar aqui? Esperamos
que com isto possamos diminuir muito do preconceito que ainda existe, e
valorizar as culturas originais de nosso continente que estavam aqui milênios
antes dos europeus e africanos chegarem.”
Dr. Fabrício Rodrigues dos Santos, coordenador do Projeto Genográfico/América do Sul
Quais são as
hipóteses mais consistentes atualmente para explicar o povoamento das Américas?
O estudo de marcadores genéticos terá caráter definitivo para determinar de
onde saíram os primeiros povos que ocuparam este continente?
Dr. Fabrício
Rodrigues dos Santos - Hoje existem muitas hipóteses alternativas que tentam
explicar como se deu o povoamento da América. Geralmente, são hipóteses
limitadas a disciplinas únicas, isto é, baseada apenas em dados de uma só
ciência, como genética, arqueologia, antropologia física etc. Entretanto, há
uma tendência em se fundir conhecimentos de diferentes disciplinas para tentar
traçar um modelo único que explique este povoamento antigo, que é uma histórica
única. Um destes modelos consensuais indica que houve uma ocupação inicial da
Beríngia, região entre Alasca e Sibéria que esta emersa durante a a última
glaciação (25 a 12 mil anos atrás), por povos que vieram da Sibéria. Este povo
da Beríngia teria dado origem a todos povos nativos da América atuais.
Rotas
migratórias de milhares de anos feitas por tribos a partir da África para o
mundo
Como foi possível, há
milhares de anos, tribos nômades atravessarem continentes, enfrentar
adversidades climáticas e chegar ao nosso território? Como o corpo humano
reagiu a tantos desafios?
Dr. Fabrício
Rodrigues dos Santos - Nossa espécie era totalmente nômade até 12 mil anos atrás
quando começou a agricultura e pecuária. Com certeza, estes povos sofriam com
as adversidades climáticas, o que ainda pode ser visto em tribos ainda nômades
como Esquimós, Yakuts da Sibéria, Yanomami do norte do Brasil, etc... O homem geralmente domina o ambiente em que
vive, utilizando o máximo de recursos ao seu redor. Infelizmente, o destino
destes povos nativos nômades é perderem estas tradições, já que para que eles
continuem, vastas áreas de terra devem ser disponibilizadas para eles, com
natureza intocada. O próprio Lula já disse que índios tem terra demais, que
eles devem aprender a usar melhor a terra... isto é o mesmo que dizer que eles
devem esquecer suas culturas e tradições, começar a plantar e criar gado, e
deixar de colher frutos da floresta e não caçar mais...
Diversidade é a
palavra que mais caracteriza as diferentes populações das Américas. Em um dos
vídeos da National Geograpchic isto fica muito evidente, principalmente quando
são mostradas diversas etnias que residem em Nova York. O que nos faz ter
feições tão diferentes se, a princípio, somos descendentes de um mesmo povo?
Dr. Fabrício
Rodrigues dos Santos - Nossa espécie tem pelo menos 100 mil anos de existência,
ou ao redor de 2500 gerações... isto é tempo suficiente para que uma variedade
de feições diferentes tenha se originado. Este fato é ainda mais acelerado
porque a espécie humana ocupou todos ambientes da terra, das planícies às
montanhas, do deserto ao gelo do ártico, que influenciam na fixação de
diferentes características entre os povos.
O senhor tem alguma
dúvida de que os negróides – como o “povo de Luzia” – são os primeiros
“brasileiros”?
Dr. Fabrício
Rodrigues dos Santos - Isto não é verdade, nem mesmo o autor do artigo afirmou
isto algum dia. Luzia tinha feições pré-mongólicas, ou seja, tinha
caraterísticas ósseas que lembram os indivíduos de povos mais antigos, que hoje
os mais parecidos ainda estão na África e também na Austrália. Antes de 14 mil
anos atrás, todos povos da Ásia eram iguais a Luzia, não havia mongólicos (como
atuais chineses, siberianos e maioria dos indígenas americanos)... então se
considerarmos que os primeiros migrantes vieram antes de 14 mil anos atrás, só
poderiam ter a morfologia como a de Luzia, que, muito provavelmente, não era
“negróide”.
Em
artigo publicado pela National Academy of Sciences dos Estados Unidos, em 20 de
dezembro de 2006, o antropólogo Walter Neves, do Laboratório de Estudos
Evolutivos Humanos da USP, relaciona 81 fósseis e os sítios em que foram
encontrados na região cárstica de Lagoa Santa. O mais antigo fóssil é o de
Luzia, com 11.000 a 11.500 anos. Em Santana do Riacho foram encontrados fósseis
datados em torno de 8.000 e 9.500 anos. Como explicar esta diferença de
séculos, uma vez que a morfologia de ambos os povos é muito similar, como já
apontou o professor André Prous?
Dr. Fabrício
Rodrigues dos Santos - Estas datas dizem respeito a anos radiocarbono, não anos
calendário (isto é uma questão técnica que não é passada para os leigos,
normalmente). 11.500 anos radiocarbono, equivalem a mais ou menos, 13.500 anos
calendário, por exemplo. Não existem problemas em explicar isto... afinal de
contas, 8000 anos atrás, grande parte dos povos que existiam na Ásia tinham
também esta morfologia.
A
análise da comparação genética dos nossos ancestrais com a civilização
contemporânea poderá responder quais são as nossas origens, esta uma pergunta
quase que eterna?
Dr. Fabrício
Rodrigues dos Santos - Esta é uma das ferramentas úteis para a reconstrução
histórica. Isto tem sido feito com bastante sucesso em vários estudos. O que é
necessário é realizar projetos que analisem muito mais pessoas, principalmente
de grupos nativos como tribos da América do Sul, da Sibéria, e mesmo de partes
isoladas da Europa, por exemplo, para recuperar com mais precisão este passado.
Por isto foi proposto o Projeto Genográfico, que é na verdade executado por
diferentes grupos de pesquisa do mundo inteiro e não pela Nat.Geographic. Aqui
na América do Sul a execução é da UFMG em Belo Horizonte.
O
que poderá mudar, culturalmente após as conclusões do Projeto da National
Geographic?
Dr. Fabrício
Rodrigues dos Santos - Acho que o mais importante, culturalmente, será o
reconhecimento pela sociedade (povos mesclados das cidades) sobre a grande
diversidade e importância histórica dos povos nativos de todo o mundo.
Culturalmente, muitos deles já desapareceram... Só no Brasil, nos últimos 500
anos, mais de 1000 culturas com idiomas diferentes desapareceram. Com estes
povos desapareceram seus rituais, religiões, artesanato, costumes, tradições
diversas... Faz parte do legado da humanidade deixar que eles vivam suas
tradições, que reconheçam e façam reconhecer a sociedade de que eles são
importantes para a história do Brasil e do mundo...
Finalmente,
qual a principal contribuição para a humanidade com as possíveis descobertas?
Qual o impacto do conhecimento da variabilidade genética das populações sobre a
saúde humana?
Dr. Fabrício
Rodrigues dos Santos - Além da importância
histórica e cultural que deverá ser reconhecida pela sociedade, esperamos
construir o Museu Virtual da História da Humanidade, divulgado pela internet em
várias línguas, resumindo todo o conhecimento acumulado neste projeto, e
comparado a dados multidisciplinares históricos (arquelogia, paleoantropolia,
linguística etc) que permita ilustrar com mais detalhes o nosso passado. A
partir deste museu, que conterá dados trabalhados para compreensão do público
leigo, esperamos que possam constar nos livros textos também muito de nossa
pré-história. Por exemplo, veja os livros-texto de história que utilizam no 1º
e 2º graus aqui no Brasil; muito pouco se fala da pré-história brasileira e da
América do Sul. Seria extremamente importante demonstrar como os “primeiros
brasileiros” chegaram aqui, quais são seus descendentes diretos hoje, que rotas
seguiram desde África, Ásia, etc, para chegar aqui? Esperamos que com isto possamos
diminuir muito do preconceito que ainda existe, e valorizar as culturas
originais de nosso continente que estavam aqui milênios antes dos europeus e
africanos chegarem.